domingo, 5 de dezembro de 2010

Filosofia da lavagem do chão

A primeira escola em que eu ensinei funciona em um prédio de 1º andar. Nas salas de baixo, acho que funcionavam as turmas dos alunos menores (não me lembro exatamente) e nas salas de cima os maiores. No final da escada, embaixo, há um corredor que vai dar na porta da rua. Antes do portão de saída do prédio, fica à esquerda a sala do diretor e à direita a sala dos professores.
No fatídico dia, desci até o térreo e fiquei parada analisando o meu fracasso. Analisei as aulas que eu tinha dado, as minhas expectativas anteriores a elas, as minhas noites de sono perdidas, o curso que eu estava fazendo, isso tudo numa fração de segundo. Fiquei parada sem saber o meu destino: se eu entrasse à direita, teria mais um dia de choro, mais uma noite sem sono; se entrasse à esquerda, pediria demissão e aceitaria minha derrota.
Entrei na sala dos professores e, enquanto os outros falavam, eu pensava em como encarar o diretor e o que dizer a ele por aquela desistência. Ele era um homem jovem, de uns trinta e poucos anos, porém conhecido pela rigidez e pelo exagero das expressões, parecia que ele estava encenando uma peça.

BREVE LEMBRANÇA DO DIA EM QUE CONHECI O DIRETOR E SUAS NOBRES PALAVRAS:

Três criaturas paradas no corredor do colégio examinando o ambiente: Juliana, Luciano e eu.
- Nós viemos falar com o diretor Fulano de Tal. - disse ao guarda.
- É aquele ali. Aquele com a vassoura na mão.
(Calma, ele não se preparava para voar. Esse é um atributo apenas das bruxas e dos fofíssimos bruxos de Harry Potter, o que ele estava bem longe de ser)
A vassoura ele estava dando a um aluno que tinha brigado. O outro brigão tinha ido buscar a sua na cozinha, eles iam varrer o colégio como castigo.

- Bom dia, diretor, poderíamos falar com o senhor?
- Quem são vocês? Estagiários?
- ... é.
Entramos na sala dele.
- Bom, é o seguinte: o público com que a escola trabalha é bem difícil, algumas escolas da nossa vizinhança só trabalham com uma viatura na porta, mas aqui não, aqui é diferente, enquanto eu estiver sentado nessa cadeira a escola não precisa de viatura para funcionar. Eu dou o sangue por essa escola.
- Nós vimos, achei bem interessante como eles obedecem às suas ordens aqui, vimos o episódio da vassoura e estávamos ali comentando. - interrompe Luciano.
- Pois bem, minha gente, vamos deixar as coisas bem claras. Eu queria dizer que, em primeiro lugar, esses meninos são como meus filhos. Se um professor não serve para meu filho, não serve para minha escola, então é rua. Não me interessa se você tem pai, mão, filho, namorado, papagaio, passarinho, contas a pagar, ficou doente, não quero saber, faltou é rua. Eu gosto de estagiário por isso, porque se faltar é rua. Outra coisa: não toquem nos meninos. Se um menino desses der na senhora e machucar o dedo, professora (dirigindo-se a mim), a senhora vai presa porque o Estatuto acoberta. Aqui tudo passa pela minha organização, sabe por quê? Porque eu não tenho coração, o meu coração eu piquei e coloquei na merenda, ele está nessa escola. Se o professor não serve para a escola, então ele tem que sair.

Naquele dia de desistência, eu - que tenho coração e que, inclusive, estava batendo severamente rápido por ter que tomar uma decisão tão importante - resolvi encarar a fera sem alma. Entrei na sala dele com os livros na mão para apertar e dar coragem:

- Bom dia, Professor Fulano.
- Bom dia.
- Gostaria de falar com o senhor.
- Fale.
- Estou desistindo, queria que o senhor devolvesse a minha carta à central de estágio.
- Mas por quê???
- Não aguento mais, quero ir embora.
- A senhora está nervosa. Vá para casa e repense. Veja, no início é sempre difícil, eu mesmo já estou aqui nesta cadeira há 4 anos e nesta cadeira já fui chamado de filho da ..., via..., mandaram tomar no... e eu continuo sentado aqui, portanto eu acho que a senhora não deve desistir. Imagina a minha dificuldade pra conseguir alguém agora? Eu digo mesmo: se a senhora sair daqui, nunca mais vai achar uma escola que preste, vai ser igual ou pior que esta. Vai desistir da profissão, é?

Eu já estava com os olhos marejados, mas tinha prometido para mim mesma que não ia chorar na frente dele.

- Se for preciso, sim!

Ele não esperava essa resposta. Ficou calado, olhando para a minha cara. Me encarava como se quisesse ver quem iria abaixar a cabeça primeiro. Então falou:

- A senhora está muito nervosa. Vá para casa e pense. Depois a senhora liga para mim e me diz uma resposta.

Saí, peguei o ônibus e desci na parada certa. Era uma mistura de alívio e tristeza com fracasso que tinha tomado conta de mim.
Entrei no supermercado e em um dos corredores havia um rapaz limpando o chão. Minha mente tem vida própria e conversa com a minha consciência o tempo todo. Uma disse para a outra:

- Tá vendo? Veja o trabalho dele. Deve ganhar um salário mínimo, mais do que você ganha com esse estágio e ninguém o incomoda.
- Sim, mas eu sou alérgica a produtos de limpeza, como poderia fazer isso?
- Não é disso que estou falando. Pese o seu trabalho e o dele. Você tem curso superior, estudou tanto, tirou boas notas e foi parar naquele lugar, trabalhando com a voz, gritando para ser ouvida quando o que você diz é mais importante para quem devia ouvir e não para você que fala. Ele limpa, fala piada, ouve música, diz palavrão e não precisa chorar o dia todo.
- hummm...
- Isso não é justo! Não que o trabalho dele não seja digno, mas você poderia estar num lugar melhor, entende?
- Sim. Hoje eu não vou chorar.

Fui para casa decidida. Eu tinha superado o trauma, não ia chorar. Chegando no portão, meu cachorro me sorriu latindo, não coloquei as malas no chão porque não as tinha, mas minha mãe veio abrir a porta. A cara dela era de uma expectativa tão grande que eu comecei a chorar dali mesmo. Desabei. Ela começou a chorar também e disse que isso não era trabalho pra ninguém, que se estava tão ruim assim o melhor era sair mesmo.
Peguei o número da escola e liguei:
- Alô, diretor? Sou eu, Eduarda. Estou ligando pra dizer que desisti mesmo.
- Certo, professora. Adeus.
Tututututututu.......

Desligou na minha cara, mal educado. Não sei se eu pulei de alegria, mas lembro que na mesma hora peguei um monte de atividades que os alunos tinham feito, rasguei e joguei no lixo. Foi importante para a minha alma ter feito isso, era como uma vingança pelo que eles tinham feito. Foi assim que tudo terminou.
Deus fez o mundo em sete dias e em três eu modifiquei o meu.

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